Na Linha dos Trópicos

Para compreender a psicologia da rua não basta gozar-lhe as delícias como se goza do calor do sol e o lirismo do luar. É preciso ter espírito vagabundo, cheio de curiosidades malsãs e os nervos com um perpétuo desejo incompreensível, é preciso ser aquele que chamamos flâneur e praticar o mais interessante dos esportes “a arte de flanar”.


De certa forma, “a arte de flanar’ de João do Rio está presente na obra de Pedro Sekiguchi e Manoel Manoel a partir da curiosidade e perpétuo desejo incompreensível do cotidiano urbano”. Construções heterogêneas, comércio pulsante, letreiros luminosos, ruídos onipresentes e o fluxo descontínuo de anônimos circulando, sobre rodas ou não, por largas avenidas, ruelas e becos, caracterizados por diferentes classes sociais, gênero e etnias configurando a paisagem da metrópole contemporânea. As obras são oriundas da experiência de circulação pela urbe refletindo-se em crônicas visuais costuradas e sobrepostas em planos que entrecruzam-se em intersecções e tangenciamentos diversos.

A resposta de Pedro Sekiguchi às suas experiências urbanas é uma colcha de retalhos alinhavada por uma mistura de texturas, cortes irregulares, grafitti e ritmos descompassados. Suas pinturas são construídas a partir de retalhos de lona, voil, elanca, gabardini e ribana associadas às colagens, ao spray e tinta acrílica resultando em uma geometria meio informal, quase construtivista. Pedro traz uma bagagem do mundo da moda e não à toa suas referências variam de personalidades como Rick Owens e Virgil Abloh a artistas mais jovens como Robert Nava e Oscar Murillo. A aparente ambiguidade de materiais e texturas é quebrada pelo trânsito de uma linha cambiante que alinhava os retalhos promovendo uma construção de puxadinhos ora toscos e brutos, ora sofisticados e elegantes.

O universo urbano de Manoel Manoel é mais dinâmico, seus trabalhos não são alinhavados e sim aglomerados, são fluxos descontínuos de uma urbe fragmentada e caótica reflexo de sua experiência pessoal de perambulação, de vadiagem por regiões distintas ativadas por extensos deslocamentos cotidianos. Manoel apresenta serigrafias construídas a partir desses congestionamentos literais e metafóricos da cidade resultando em imagens cruas e ásperas, distanciadas de sua origem embora, paradoxalmente, remetam a certa melancolia.

Manoel refere-se a seus trabalhos como ruínas tropicais e, talvez seja nesse lugar de ruína que os trabalhos dos dois artistas se encontram, ao menos dialogam, ou seja, é a experiência viva do corpo social, político e estético da cidade desiludida que vai desencadear todo o processo criativo desses artistas. E é na “alma encantadora das ruas”, que a inteligência no perambular será convertida em arte.


Mirela Luz é artista visual e professora da EBA/UFRJ


¹ Fragmento do texto de João do Rio A alma encantadora das ruas.

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